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terça-feira, 28 de março de 2023

Ao Menino Manco Diante de Quem Fechou-se a Porta No Monte Kolppenberg




Nasci ao mundo, terra estranha, para nele estar estrangeiro, talvez em papel mais confortável, do que o anterior, de apátrida na minha terra natal.

E nessa, que era então uma terra de espinhos morais, por um longo tempo caminhei com alma e pés descalços.

Mas agora, caminho por palácios gigantes de concreto e vidro e aço polido e percorro os salões enormes, onde homens tambem polidos, duros como concreto  e com corações de aço, que veem a si como gigantes, sentam-se em tronos outorgados e decidem o destino de muitos.

Nesta seara igualmente espinhosa, eu caminho no piso de mármore frio, ressoando com meu  pisar o  do som dos passos de muita gente em pressa.

Nos pés levo sapatos que custam o salário de um trabalhador e na alma, a certeza de estar vivendo em vão.

Desgostoso, deixo a mente escorregar, deslizo para os reinos da memória e me lembro...

Foi me dito que no início, Deus criou o céu e a terra e então, dentre tudo isso, dedicou especial atenção em meio a ordem criada, ao que seria  o meu quinhão de caos e de dor.

Destinaram-me a uma vida servil, de costas e cabeça curvadas, mãos e alma embrutecidas a lavrar do solo o sempre insuficiente pão.

Deram-me na saída, aspirações subalternistas com que me distrair nos momentos de folga  e me estenderam a garrafa onde, por sonhos etílicos, no esquecimento da minha miséria, também desapareceria nas minhas alienações do eu, a consciência da dureza da minha servidão destinada.

Apontaram-me altares vazios diante dos quais eu deveria me curvar e oferecer com fé orações que seriam frequentemente ignoradas. Mostraram-me deuses indiferentes ou surdos, aos quais eu deveria oferecer lágrimas e súplicas e paradoxalmente os temer e os amar.

E, nos arremates da minha sina, entre os atos de nascer sozinho  e morrer violentamente,  existiria um hiato de tempo em que meu corpo serviria ao conforto dos que seriam os eleitos à grandeza e seria para mim o palco do espetáculo amargo das minhas dores e do meu desamor.

Algo, no entanto, falhou e eu me tornei ainda mais miserável, estando o tempo todo dolorosamente consciente de mim mesmo e do que poderia ser o meu destino.

Na infância, no jardim interno que toda criança leva na alma, vicejava em meus pensamentos uma chama a que eu não tinha o direito.

Como um pequeno Prometeu mal nutrido, de pele marrom e cabelos crespos, roubei-a ao diabo ou a deus e com ela atormentei-me com pensamentos de grandeza, de nobreza talvez ilusória, enquanto me apunhalava o estômago em estocadas dolorosas a fome comum daqueles tempos.

Era a alma-em-espinhos desejando florir  de um menino pardo, os pés descalços na poeira vermelha do tempo, em uma terra árida e de homens ásperos, fotografia velha em que o tempo levou as cores e as memórias, nos anos de mil novecentos e setenta e tantos sofrimentos gravados na cabeça cheia de sonhos, a margem da vida, quando não havia alimento para o corpo, amor para a alma ou futuro para o mundo.

E lá, na poeira vermelha, por entre ruas sem calçamento, agua poluída, fome, doenças, miasmas  e gente sem metafísica, poderia haver poesia onde sequer havia pão?

E ainda assim, teimava em surgir na pulsação do meu espirito ainda indomado, o impossível dentro do possível, o infinito ardendo na palma da mão pequena, magra e de unhas sujas. 

Nos limites invisíveis da minha prisão sem grades ou trancas, um mundo vasto delineava-se no anseio de ser mais do que o corpo frágil, constantemente carente de nutrientes e afagos, o estômago roncava e eu sonhava com a Terra do Nunca, poesia brotava na mente no mesmo ritmo que se estragavam na boca os dentes sem tratamento, e passava a paralisia cinza do tempo entre as  paredes sem reboco e por entre almas sem abstrações.

Para onde foram esses dias perdidos? Em que passado refeito no meu emaranhado de traumas perdeu-se minha pequena e brilhante alma, o futuro e a chama verde e teimosa da esperança? 

Fecho os olhos para o passado e os abro ao presente e olho para meus sapatos lustrosos, que custaram o salario médio de um trabalhador, (talvez um homem enorme,  melhor do que eu, alma simples de  mãos calosas que  ergueu do nada esses palácios em que seu destino é decidido) e sinto por mim mesmo um desprezo profundo, próximo ao rancor e fujo pelos corredores sentindo o olhar acusador e atemporal de um menino marron, criança parda perdida na poeira do tempo.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Sândalo Caído 2- (ou sobre como a fábula da vida é contada sem zelo)

 


Da extinção do sândalo caído compus um poema tolo,

Em momentos de febre de sentimentos.

O gume frio do machado perfumado,

Que me inspirou versos tão insípidos

Nada valia sem o cabo que o empunhava.

O cabo, fora feito de um galho do sândalo,

E o Sândalo o forneceu à mão que o deitou.

E eu me juntei a camarilha sem inspiração para dar voltas no entorno de contradições vazias.


Mas à beleza daquela mulher insana já haviam cantado demasiados poetas ...

E ela ficou fria, bocejou votando aos meus versos banais - oração sem fé de uma alma atéia - justa indiferença.

E foi brincar de ser vento e dar nós nos pensamentos daqueles a quem sua loucura inspirava mais verdadeira e violentamente.


O sândalo caído e minha fé perdida…

A despeito da minha inércia, 

Sobre a trilha antiga, a vida se ergueu novamente em floração

Tempos e silêncios deram as mãos e as muitas chuvas lavaram da terra o perfume de sua queda.


E eis,

Tudo tem um início e nesse inicio já está delineado o seu fim.

Isso se aplica a chama da lareira, ao sândalo caído e a coisas em demasia.

Sinto isso, mesmo que minha razão teimosa fraqueje em aceitá-lo.

Reviro as cinzas da lareira a cata de uma ultima brasa e repito, sussurrando baixo, tentando convencer a mim mesmo:

Não foi a minha mão, não foi meu o machado”

E não serei cúmplice da minha própria queda hoje,

Mais do que fui dessas linhas sem inspiração, que minha impaciência lança ao fogo do meu esquecimento.

Talvez quando esta derradeira labareda se extinguir por fim,

Eu finalize esses versos bem como a tentativa de não pensar na sensação estranha de que minha história está sendo reescrita por mão invisivel e displicente.

E talvez por fim, o frio me expulse dessa janela,

E va dormir um sono silencioso e sem sonhos.


quarta-feira, 1 de março de 2023

Ouroboros - Ou da Dinâmica Entres os Que Sonham


 

Na obscuridade das minhas linhas, em sono descuidado, sonhei que você me sonhava,
E foi dessa forma, que comecei a duvidar da certeza da minha inexistência,
Que eu era aquela ficção contada por mim mesmo ao nada, que respondia em eco com a minha voz,
Nas horas voláteis, no vazio dos dias entre o horário do almoço, o sono do divã e a sessão das dez.

Se você existia, era suposto que eu também haveria de ser o sonho sonhado por outro sonhador.
Tal qual o sonhei primeiro em dias muito antigos.
E então me pareceu haverem flores brotando em um abandonado jardim do eu,
Uma primavera implacável rompendo em verde no cinza dos meus outonos da alma.
(E se meus dedos inábeis pudessem ao piano acompanhar as batidas rítmicas do meus desejos, ao criar possibilidades onde antes nem vazio havia,
Eu faria uma música de inefável beleza que levaria o seu nome).


De alguma forma, sinto que seu nome soa como o retinir de pequenos sinos a badalar dentro de uma fantasia.
Talvez voce tenha nome de flor, de pedra preciosa que seja ou talvez quisera o amor ou a fé de seus pais dar-lhe o nome de uma rainha antiga ou o de um profeta
(E, deus!, em meu devaneio, vejo-o precioso, mas não como pedra, perfumado como uma flor reluzente, e, talvez você seja mesmo uma rainha no império do coração de alguém ou profeta incompreendido e rejeitado por seu próprio povo).


Retiro os olhos desse livro onde o crio e o sonho em letras, as tuas formas lindas e desconhecidas tomando corpo no destino de tudo o que posso desejar, 

E ainda mais sonhador olho para as direções à volta do meu cárcere suave, mas então perco-o de vista, pois sinto-o mais vivamente nestas linhas em que escrevo ha anos uma carta de amor e que você existe em um ponto cardinal que levo dentro da minha mente.


Observo escritos passados, na gaveta fechada a chave e vergonhas.
Desinvestidos dos sentimentos que lhes deram forma, parecem-me a soma de todos os olhares estrangeiros onde reconheci os teus olhos de passagem.


Penso em tudo o que eu pensava quando não estava pensando em você e me surpreendo a te ver delineado em todos aqueles pensamentos.


 
 


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