Translate

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Insone 2


Coloco  um copo de água no batente da janela.

Olho para a noite abafada que não me olha de volta.

E, na coletânea de pequenos mistérios que compõem o vitral dessa vida imensa, acresento mais este; de como é possível que as duas horas da manhã ainda esteja fazendo calor, nessa terra paralisada e sem vento…


Quente demais para dormir e quente demais para ficar acordado.


Eu estava lá, ainda agora, imerso na perfeição de um sonho. 

Era uma Ágora composta de muitas versões de notáveis raciocínios.


E tudo me estava tão claro, coeso,  límpido como um espelho novo.

Dialogava em lógica perfeita, fria, desapaixonada, desinvestida dessa voracidade e urgência que parece permear todos os meus pensamentos em febre.


E me vinham filosfias - agora perdidas - tão lúcidas, alinhadas, confortáveis como o zumbido de uma máquina que se sabe, em perfeito funcionamento.


No limiar do sono, entre aquele mundo das formas perfeitas e este, em que tudo me dói,  recusei-me tão veementemente quanto me permitiu o cavalheirismo a que eu estava investido, na confraria elegante do meu parlamento onírico, a tornar a este mundo estático de pensamentos rodopiantes.


Mas privado da tenaz ferocidade com que defendo e ataco pontos de vista a vista dos pontos que se me apresentam nesse mundo, deixei-me persuadir pela lógica implacável daquele lugar, e deslizei de volta, relutante e dócil, pra este mundo insone e ilógico.

(Quente, meu Deus!)


E tão implacável quanto a milimétrica lógica na qual instantes antes eu embalava um sonho, a realidade desse mundo desabou sobre mim, lançando sobre meus olhos e sentidos, uma coritina de confusão.


Tento organizar a algazarra dos meus pensamentos em louca debandada e em atropelo; uma manada querendo passar todos ao mesmo tempo pela porta estreita da percepção, tendo atrás de si sentimentos terríveis (sempre esses malditos sentimentos terriveis!) a tanger-lhes para dentro e para fora.


(Deus, que calor! Por que é que nunca venta nessa cidade?)


Instantes atrás, dentro de compartimentos organizados nos sonhos…


Tudo o que eu pensava estava  coreografado, impecavelmente coordenado. E em uníssono acordo, polidos, políticos e éticos, esses muitos pensamentos que enxameiam agora o ar como moscas repelentes, estavam arquitetados como fileiras de átomos e eu lhes podia chamar por nome e os reconhecer como filhos, embora fossem milhares.


E essa queda, para a clivagem, para a ruptura, um exercício de catar pedaços de si mesmo chamado Vida Desperta foi acertada por um conclave que, quando deliberou me pareceu tão lógica…


Mas então aqui,  na janela, no ar quente e parado, fitando uma noite quente - e de alguma forma imunda como um pesadelo, sem barulhos noturnos, sem sons de grilos ou sirenes ou qualquer som que denuncie a vida - uma noite que não é carinhosa e cheia de mistérios como era na minha terra, organizo-me minimamente e ao tentar deslizar de volta e sem muita expectativa, para um sono sem sonhos, me pergunto...


Se é sensato que um homem deposite toda a sua esperança na mutabilidade impossível de um passado inevitável.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...